O racionalismo de Descartes: da dúvida radical à certeza absoluta
Ao escrever suas "Meditações Metafísicas", Descartes se questionou: e se tudo que percebo e acredito for apenas ilusões criadas por um gênio maligno?
Qual é a fundação do seu conhecimento? As informações que recebemos dos livros, professores, ou mesmo de nossas próprias experiências, são realmente sólidas? René Descartes, no século XVII, trouxe à tona essas questões ao escrever suas “Meditações Metafísicas”. Naquela época, a ciência estava em ascensão e muitas das verdades tradicionais estavam sendo desafiadas. Descartes se perguntou: e se tudo que aprendi até agora for falso? Como posso ter certeza de algo?
A dúvida radical
Ele começa seu questionamento se perguntando se os sentidos, algo que usamos a todo instante, são capazes de produzir conhecimento confiável. Considere uma situação simples: você já olhou para um lápis ou caneta imersa num copo d’água e percebeu que ele parece quebrado? Na realidade, o objeto não está danificado. Ou pense naquela vez em que você viu alguém de longe e jurou que era um amigo, só para se aproximar e perceber que era um completo estranho. Nossos sentidos, como a visão, podem nos enganar em situações tão cotidianas. Diante dessas experiências, Descartes concluiu:
experimentei algumas vezes que esses sentidos eram enganosos, e é de prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou uma vez.
Em outras palavras, se já fomos enganados pelos sentidos antes, por que confiar cegamente neles agora?
Depois de colocar em dúvida tudo que percebe com os sentidos, o filósofo vai mais longe em seus questionamentos. E se algo ou alguém, muito poderoso, estivesse nos enganando, ele se pergunta. E se tudo, desde as árvores que vemos até os números que aprendemos na escola, fosse uma ilusão? Descartes propõe a ideia de um “Gênio Maligno”, um Deus capaz de criar uma realidade inteira para nos enganar. Parece um pouco com aquelas histórias de realidades virtuais, não é? Só que Descartes chegou a essa ideia muito antes de qualquer filme de ficção científica. Ele se perguntou: e se esse Gênio estiver fazendo-me acreditar em tudo que vejo, ouço ou sinto? Imagine, por um momento, que cada livro que você leu, cada conversa que teve, cada aroma que sentiu não seja real, mas sim uma invenção desse Gênio para iludi-lo. A grama sob seus pés, o calor do sol em sua pele, o som da chuva batendo na janela – tudo não passaria de uma simulação perfeita.
Nas palavras de Descartes
quem me poderá assegurar que esse Deus não tenha feito com que não haja nenhuma terra, nenhum céu, nenhum corpo extenso, nenhuma figura, nenhuma grandeza, nenhum lugar e que, não obstante, eu tenha os sentimentos de todas essas coisas e que tudo isso não me pareça existir de maneira diferente daquela que eu vejo? E, mesmo, como julgo que algumas vezes os outros se enganam até nas coisas que eles acreditam saber com maior certeza, pode ocorrer que Deus tenha desejado que eu me engane todas as vezes em que faço a adição de dois mais três, ou em que enumero os lados de um quadrado, ou em que julgo alguma coisa ainda mais fácil, se é que se pode imaginar algo mais fácil do que isso.
Penso, logo existo
Se você seguiu o raciocínio de Descartes até aqui, talvez esteja duvidando de tudo. Ao duvidar, o que você está fazendo? Está pensando, não é? Descartes percebeu algo extraordinário nesse simples ato. Mesmo que ele duvidasse de tudo, até de sua própria existência, o simples fato de duvidar era uma forma de pensar. E se ele estava pensando, então ele certamente tinha que existir para realizar esse pensamento.
Em suas próprias palavras, ele declara: “Cogito, ergo sum” – que traduzido significa “Penso, logo existo”. A beleza dessa afirmação é que ela é auto-evidente. Ao tentar refutá-la, você inadvertidamente a confirma, porque tentar provar que “Penso, logo existo” é falso, ainda requer que você pense, e, portanto, exista.
Mas, por que esse pensamento é tão revolucionário? Bem, em um mundo de incertezas, onde tudo pode ser posto em dúvida, Descartes encontrou uma certeza fundamental. Ele descobriu um ponto fixo no qual poderia basear todo o seu sistema filosófico. É como encontrar um pedaço de terra firme em um oceano tempestuoso.
Descartes, com sua afirmação “Penso, logo existo”, nos deu um fundamento sólido para acreditar em nossa própria existência. Mas ele não parou por aí. A partir dessa certeza, ele começou a reconstruir seu conhecimento, peça por peça, em busca de outras verdades que poderiam ser estabelecidas sem a menor sombra de dúvida.
A ideia inata de Deus
Descartes já tinha estabelecido sua própria existência com o “Penso, logo existo”. Mas, ele se deu conta de algo intrigante: possuía em sua mente ideias que não pareciam provir de suas experiências sensoriais. Entre essas ideias, a mais notável era a ideia de um ser perfeito, infinito e eterno – Deus.
Agora, imagine você, em seu quarto, refletindo sobre tudo o que conhece. De repente, você se depara com a ideia de um ser supremamente perfeito, algo que nunca viu, ouviu ou sentiu através dos sentidos. De onde vem essa ideia? Descartes se perguntou o mesmo.
Ele argumentou que todas as ideias devem ter uma causa, elas não podem surgir do nada em nossa mente. E essa causa deve ter pelo menos tanta realidade quanto a ideia em si. Pense nisso: se você tem a ideia de um cavalo, mesmo que nunca tenha visto um, essa ideia poderia ter sido causada por coisas que você viu ou ouviu que tenham algumas semelhanças. Mas a ideia de um ser infinitamente perfeito? Onde isso se encaixa? Como poderíamos ter uma ideia tão grandiosa se somos seres finitos e imperfeitos e não existe nada em nosso entorno com essas características?
Descartes chegou à conclusão de que a ideia de Deus não poderia ter se originado de nós mesmos, já que somos imperfeitos. Ela tampouco poderia ter origem a partir da nossa percepção do mundo. Portanto, essa ideia deve ter sido colocada em nossa mente por algo que possui todas as qualidades da ideia de Deus – o próprio Deus.
Em outras palavras, a presença dessa ideia inata em nós é a “impressão digital” de Deus em nossa alma. É uma marca de que fomos criados por Ele e que Ele, de fato, existe.
Retomando a confiança
Após todo esse profundo exercício de dúvida, onde Descartes colocou em xeque quase todo o conhecimento humano, chegando ao extremo de considerar a possibilidade de um Gênio Maligno que nos enganava constantemente, nos deparamos com uma pergunta: como podemos recuperar nossa confiança no mundo e em nossos próprios sentidos?
A solução para Descartes está firmemente ancorada em seu “Penso, logo existo”, em uma verdade evidente descoberta a partir do uso da razão e, a partir disso, na existência de um ser perfeito, infinitamente poderoso e bondoso. Se Deus é perfeito, como sua ideia inata sugere, então Ele não nos teria dotado de faculdades que nos enganam sistematicamente. E tampouco teria permitido a existência de um Gênio Maligno. Assim, se utilizarmos corretamente nossa razão, podemos, sim, alcançar verdades confiáveis sobre o mundo.
Então, após essa tumultuada viagem através das Meditações de Descartes, retornamos a um mundo familiar, mas com uma compreensão renovada e mais profunda de sua estrutura e de como conhecê-lo. Graças à presença do “Penso, logo existo” e da ideia inata de Deus, a confiança no mundo externo é restaurada, mas agora com uma fundação muito mais sólida e refletida.
Por que Descartes é um racionalista?
Nesse ponto do texto, você já tem condições de compreender por que Descartes é considerado racionalista. Sua abordagem à filosofia destaca a supremacia da razão como a principal fonte de conhecimento, colocando-a acima das experiências sensoriais e dos testemunhos tradicionais que muitas vezes nos guiam em nosso dia a dia. Seu exercício de dúvida é um exemplo claro disso. Em vez de aceitar cegamente o que lhe foi ensinado ou o que seus sentidos lhe mostraram, Descartes escolheu questionar tudo, desde a confiabilidade de seus sentidos até a existência do mundo externo. No processo, ele fez um retorno à própria mente, ao ato de pensar, para encontrar uma base sólida e indubitável para o conhecimento.
Mas a razão, para Descartes, não era apenas uma ferramenta para duvidar, mas também para construir. Uma vez que ele estabeleceu sua famosa conclusão “Penso, logo existo” usando a razão, ele não parou por aí. Usando a mesma razão, ele se aventurou ainda mais na estrutura de seu conhecimento, explorando ideias inatas, como a ideia de Deus, e construindo argumentos racionais para justificar suas crenças. Ele acreditava que a mente humana, quando usada corretamente, tinha a capacidade de alcançar certezas que iam além das informações mutáveis e às vezes enganosas fornecidas pelos sentidos. Em essência, para Descartes, era a razão, e não a experiência, que detinha a chave para o verdadeiro e indubitável conhecimento.
- Dúvida Radical. Descartes questiona a confiabilidade dos sentidos, exemplificando como eles podem nos enganar em situações diárias, levando-o a considerar a possibilidade de um “Gênio Maligno” que poderia criar ilusões indistinguíveis da realidade.
- Penso, logo existo ou cogito, ergo sum. Em meio a suas dúvidas, Descartes identifica o pensamento como uma certeza indubitável. A conclusão é que, ao duvidar, ele confirma sua própria existência.
- Ideias Inatas. Descartes argumenta que a presença de uma ideia inata de um ser perfeito em sua mente deve ter origem no próprio ser perfeito, Deus, e não em sua experiência ou na sua própria natureza imperfeita.
- Restauração da Confiança. Com a certeza de sua existência e da existência de Deus, Descartes propõe que Deus, sendo perfeito, não permitiria que fôssemos constantemente enganados por nossos sentidos ou por um “Gênio Maligno”.
- Racionalismo. Descartes é identificado como um racionalista porque valoriza a razão acima da experiência sensorial, usando-a para questionar, desafiar e, por fim, reconstruir seu conhecimento sobre a realidade e a existência.